Atualmente o ensino de História no Brasil passa por um amplo processo de reformulação, que inclui aspectos essenciais como o conteúdo, metodologias, teorias e a própria formação de professores. Com certeza do ponto de vista das ciências, a História é uma disciplina muito dinâmica que caracteriza-se por uma constante atualização com inclusão de novos saberes e conhecimentos adquiridos pelas pesquisas mais recentes ocorridas no transcorrer do tempo e não é de hoje que os professores, como eu, em sala de aula veem-se na posição de ter que ensinar aquilo que não aprenderam em sua instrução acadêmica. Mas para além dessa peculiaridade prática que afeta o exercício da profissão de professor de história, as atuais mudanças ocorrem dentro de um processo mais amplo de reformulação da educação brasileira como um todo. Iniciada com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1996, essa trajetória passou pela adoção das concepções genéricas de habilidades e competências em substituição aos antigos conteúdos que compunham os tradicionais programas vestibulares e continuam figurando nos sumários dos livros didáticos. Esse mesmo processo de mudanças criou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o transformou em instrumento de seleção e aprovação para o ingresso na educação superior. Por fim dentro dessa nova organização da educação, chegamos a aprovação (entre outras) da lei 10.639/2003 que inclui nos currículos escolares a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira.
O estabelecimento da obrigatoriedade do ensino da história africana nas redes de educação básica, parte de duas justificativas básicas: Em primeiro lugar o reconhecimento da importância e das fortes influências das culturas africanas na constituição do mundo globalizado contemporâneo, em especial na formação da cultura brasileira. E em segundo lugar no reconhecimento da negligenciação histórica com que se tratou o continente africano e os povos que o habitam e habitaram. O ilustre filósofo alemão Wilhelm Friedrich Hegel, que muito bem formulou e teorizou sobre o método dialético de compreensão da realidade, cometeu uma burrada homérica ao afirmar que “a África não tinha história” (ele chegou a ir mais longe nessa burrada e afirmou também que os africanos não podiam ser educados). Mas Hegel não estava sozinho em seu tempo. Muitos outros especialistas europeus sustentavam que os povos da África não podiam ser objeto de estudo científico, notadamente pela ausência de fontes e documentos escritos de sua história.
A ignorância é mãe de muitos preconceitos. Não é por que você nunca viu uma coisa, ou simplesmente a desconhece, que ela não existe. De fato a História da África tem despertado maior interesse e se desenvolvido nos continentes europeu e americano, muito recentemente e foi pela maior parte do tempo desconhecida dos filósofos, pensadores e pesquisadores desse “mundo ocidental”, que inseridos numa cultura marcadamente judaico-cristã e influenciados por conhecidos textos bíblicos, concluíram que ruínas descobertas no oriente médio eram evidências de que o Jardim do Éden estava localizado onde hoje é o Iraque e que portanto foi ali que surgiu, por vontade divina, a humanidade e o que se pode chamar de civilização. Na verdade estudos paleontológicos e arqueológicos mais atuais, ressaltam a África como "berço da humanidade".
O fato é que até as grandes navegações europeias do século XV e XVI, os europeus (que criaram no século XVII e XVIII a ciência como a conhecemos hoje) tinham contato apenas com a região do norte do continente africano, banhada pelo Mar Mediterrâneo que os tocava mutuamente. Esse pequeno norte africano separado do imenso sul pelo maior deserto do mundo o Saara é que foi chamado primeiramente de África, ou especificamente de província da áfrica, pelos romanos (talvez a origem seja o termo do latim áprica, que significa ensolarada). Essa África do norte, onde ficava o Egito antigo, ao oriente e a próspera Cartago, ao centro, desde a antiguidade, esteve exposta e sujeita aos povos indo europeus (brancos) que a colonizaram e conquistaram em constantes e sucessivas ondas, até “branquearem” sua população e converterem suas crenças. O sul do Saara era chamado genericamente de Etiópia ou Sudão (terra dos homens negros), um território simplesmente desconhecido, principalmente para os Europeus. Os árabes, navegando pelo Mar Vermelho, puderam conhecer (e em boa parte converter) a costa oeste do continente e as regiões ao sul do Saara, bem antes dos europeus.
Afora os Hicsos e os Persas, que vieram da Ásia e conquistaram o Egito antes dos europeus, foram os árabes que penetraram mais profundamente na África e puderam além de conhecer melhor e com mais exatidão toda a complexidade da vida naquele continente, marcar a a cultura e a história africana. São considerados os primeiros historiadores da África os islâmicos Ibn Khaldoun e Ibn Battuta, que além da tradicional peregrinação, de suas cidades natais em Túnis (atual Tunísia) e Tânger (atual Marrocos) respectivamente até Meca, realizaram viagens pela África e fora dela, deixando ambos, importantes relatos com observações sobre o que viram e presenciaram.
Os escritos de Ibn Khaldoun e Ibn Battuta, foram conhecidos pelos pensadores árabes antes de serem conhecidos pelos pensadores europeus, cujos cartógrafos dos séculos XV escreviam simplesmente em seus mapas da África a expressão “ibi sunt leones” (em latim: ai existem leões). De certo modo a expressão latina revelava um álibi para sua ignorância sobre aqueles lugares. Estava clara a mensagem, era uma região selvagem e perigosa. Mas navegando pelas beiradas os europeus acabaram descobrindo que além de leões, havia nesses lugares muito mais. Havia sal, marfim, metais, havia o ouro e haviam escravos. Foi o que precisava para se interessarem mais pelo lugar. Pelas riquezas materiais e pelas possibilidades de negócio para a burguesia é certo. O povo e sua história continuariam, se ainda não continuam, sendo desconsiderados. É hora do ocidente começar a se redimir frente a ignorância e aos preconceitos em relação a África.
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