Extraído da última parte da obra “ARITMÉTICA DA EMÍLIA” de Monteiro Lobato.
(…)A lição foi interrompida pela chegada do correio com uma porção de livros encomendada por Dona Benta. Entre eles vieram os de Malba Tahan, um misterioso califa árabe que conta lindos apólogos do Oriente e faz as maiores piruetas possíveis com os números. Dona Benta passou a noite a ler um deles, chamado O HOMEM QUE CALCULAVA, e no dia seguinte, ao almoço, disse:- Parece incrível que esse árabe saiba tantas coisas interessantes a respeito dos números! Estive lendo-o até às quatro da madrugada e estou tonta. O tal homem que calculava só não calculou uma coisa: que com suas histórias ia fazer uma pobre velha perder o sono e passar a noite em claro. Livros muito bons são um perigo: estragam os olhos das criaturas. Não há como um “livro pau”, como diz a Emília, porque são excelentes narcóticos…
A criançada assanhou-se com o Malba Tahan, de modo que o pobre Visconde de Sabugosa foi deixado as moscas. Emília declarou que “O Sabugo Que Calculava” não valia o sabugo da unha de “O Homem Que Calculava”, e para provar a afirmação chamou o Visconde e propõe-lhe um problema:
- Venha cá, sabidinho da Grécia. Venha me resolver este problema tahânico. Um lixeiro juntou na rua 10 pontas de cigarro. Com cada 3 pontas ele fazia um cigarro inteiro. Pergunto:quantos cigarros formou com as 10 pontas?
- Nada mais simples – respondeu o Visconde. Formou 3 cigarros e sobrou uma ponta.
- Está enganado! - berrou Emília. Formou 5 cigarros…
- Como não é possível…
- Nada mais simples. Com 10 pontas achadas na rua ele formou 3 cigarros e fumou-os – e ficou com mais três pontas que juntadas àquela quarta deu 4 pontas. Com essas 4 pontas formou mais um cigarro e sobrou uma ponta. Fumou esse cigarro e ficou com 2 pontas. E vai então e pediu emprestada a outro lixeiro uma ponta nova e formou um cigarro inteiro – o quinto! Temos aqui, portanto, 5 cigarros formados com as 10 pontas, e não 3 cigarros, como o senhor disse, Ahn!… concluiu Emília botando-lhe um palmo de língua.
- Está errado – protestou o Visconde – porque se ele fumou esse quinto cigarro, sobrou uma ponta.
- Não sobrou coisa nenhuma – volveu Emília – porque como ele havia tomado de empréstimo uma ponta nova, pagou a dívida com a última ponta sobrada. Ahn!… e botou-lhe mais um palmo de língua.
Todos riram-se e o Visconde desapontou. E não foi só isso. Ficou tão desmoralizado como professor de Aritmética, que quando bateu palmas e chamou os meninos para a lição,ninguém mais quis saber dele. Pedrinho entretinha-se com o Japi, um cachorrinho que apareceu no sítio e estava todo arrepiado diante do rinoceronte. Rabicó andava por longe, devorando as goiabas caídas durante a noite. Narizinho fora ajudar tia Anastácia a escamar uma cambada de lambaris. Dona Benta, essa não largava do Malba Tahan.
E Emília?
Ah, a Emília acabava de fazer uma das suas célebres maroteiras. Fora ao escritório do Visconde e, vendo lá o manuscrito da “ARITMÉTICA DO VISCONDE”, cortou o “T” da palavra Aritmética e substituiu o nome do autor pelo seu. Eis a explicação da ARITMÉTICA DO VISCONDE ter saído com o frontispício duplamente errado – sem o “T” e sem o nome do verdadeiro dono...
Um comentário:
Monteiro Lobato tem sido questionado ultimamente por não ser bem alinhado com algumas abordágens contemporâneas das mais progressistas tentências pedagógicas. Ele foi, ou ainda é, não politicamente correto com as palavras que usava, mas que faziam parte do seu tempo. Falar de cigarros para criança, atualmente não sei se é pertinente. Mas de qualquer forma é um personagem importante de nossa literatura nacional. E muitos como eu conheceram seus personágens através da Rede Globo. Mas minha filha mais velha também assistia ao Xou da Xuxa e sobrevivemos a tudo isso.
Postar um comentário